terça-feira, 4 de março de 2014

Chac Mool, de Carlos Fuentes

Resgatando outro de meus textos antigos, elaborado para uma disciplina cursada com o Prof. Dr. Eduardo Coutinho na Faculdade de Letras UFRJ (Doutorado, primeiro semestre de 1986). Desta versão original - aqui oferecida com pequenas correções e acréscimos gráficos, mas mantido seu formato de origem - se derivaram outras, apresentadas em eventos na própria FL-UFRJ, e em congressos nacionais e internacionais. A versão em castelhano, revista e ampliada, foi publicada com o título  El juego intertextual en Chac Mool: un ritual de transfiguración en busca de la identidad em  Impacto y futuro de la civilización española en el Nuevo Mundo - Actas del Encuentro Internacional Quinto Centenario / Décima Asamblea General de la Asociación de Licenciados y Doctores Españoles en Estados Unidos (Spanish Professionals in America). Madrid, España: Sociedad Estatal Quinto Centenario / Ediciones Siruela, 1990. p. 365-370. Ao longo dos vinte e oito anos que separam estas minhas primeiras incursões no território incerto da crítica literária e a visão que atualmente tenho da produção literária de Carlos Fuentes, se foram gestando novas reflexões e leituras possíveis sobre este conto e outros relatos do escritor mexicano, que em breve apresentarei neste mesmo espaço virtual.
 
 
Introdução
 
Assim como a arte dos muralistas - Rivera, Orozco, Siqueiros -, a obra de Carlos Fuentes constitui amplo painel interpretativo da cultura mexicana, o qual, negando a visão meramente alegórica, infunde em seus elementos constitutivos um caráter hierático: cada um de seus romances e contos, observa Octavio Paz, "se apresenta como um hieróglifo; ao mesmo tempo, a ação invisível que os anima é uma apaixonada, tenaz tentativa de decifrar esse hieróglifo. Cada signo remete a outro signo".[1] Para Fuentes, escrever revela-se como "a incessante interrogação que os signos fazem a um signo: o homem; e a que este signo faz aos signos: a linguagem".[2]
 
Entendendo linguagem como processo de socialização do tempo, Fuentes a ela transfere a tensão e a agonia geradas pela premência de decifração de uma História na qual impera a simultaneidade, onde não há antes nem depois. Caracterizado pela coexistência de diversas culturas - desde a neolítica até à industrial moderna -, o México possui, pelo menos, quatro tradições históricas:[3] as concepções míticas e cósmicas indígenas; a tradição romana da legitimidade e da continuidade, convertida pela Espanha em projeto transcendente (o poder e a divindade coincidindo em seus propósitos); o individualismo epicurista e estóico que isola os mexicanos da comunidade em troca de serenidade e satisfação pessoais; e o positivismo empírico e racionalista absorvido da Inglaterra, França e dos Estados Unidos.
 
Microcosmo inserido no labiríntico dilema temporal mexicano, o mundo indígena compõe-se a partir de várias leituras, nos níveis histórico, social, religioso, sociológico, estético, simbólico, físico e metafísico, real e suprarreal. Apesar de não poder ser admitida pelo pensamento positivista europeu, a secreta tensão inerente à antiga arte mexicana sobrevive: tensão entre liberdade e necessidade, entre estar e vir-a-ser, entre padecimento e desejo, entre consagração e profanação, entre identidade e anonimato.[4]
 
Coatlicue
Os deuses mexicanos originaram-se de uma cultura de repetições sagradas que exclui a renovação histórica. Simbolizam uma vontade estática: necessidade de uma certeza de permanência, de estabilidade, de imobilidade ante a suspeita do fim iminente. São, portanto, algo mais que uma ilustração da natureza, afirma Fuentes; pretendem ser o que esta jamais pode ser: o outro, uma realidade separada.[5] Diferentemente dos deuses da Antiguidade greco-latina - genitais e interpenetráveis, como, por exemplo Vênus e Apolo -, os deuses mexicanos são monolíticos - como Cuaticue, separada das vacilações, tentações, necessidades ou liberdades humanas -, não possuem fissuras: são autocontidos e omnicontinentes. Concebidos pela necessidade - prova da insuficiência humana -, refletem uma liberdade diferida.[6]
 
Se os homens não podem executar as obras dos deuses, podem os deuses executar as obras dos homens?, pergunta Fuentes; e responde: a Antiguidade greco-latina afirma que sim, que o destino dos deuses se confunde com o dos homens - cultura trágica que aspira à união; a antiguidade mexicana responde negativamente: os deuses são diferentes dos homens - cultura teocrática, que afirma a separação.
 
Até que ponto foram os mexicanos criados à imagem e semelhança de seus deuses? Seria possível o retorno à origem sem separação? A resposta encontra-se, segundo Fuentes, numa outra tradição - a quinta -, que ainda resta aos mexicanos, por ele definida como "el cabo olvidable de nuestra historia":[7] a Utopia fundadora, a luta do discurso linear do ocidente com o fantasma do tempo cíclico indígena, a "criação de uma espiral poética na qual o tempo e linguagem, resistindo-se mutuamente, não repetem o passado, mas fundam de novo a origem".[8] A base é a mais valiosa tradição espanhola erasmista: a da loucura falando desde o coração da racionalidade, como Cervantes, Goya, Galdós, Buñuel e Cortázar.
 
Moldado tanto pela irracionalidade como pela ironia, o Chac Mool[9] de Carlos Fuentes reúne todos os níveis do questionamento e da procura da identidade do homem mexicano.
 
 
Um ritual de transfiguração
 
Os três parágrafos iniciais de Chac Mool informam sobre a morte de Filiberto através do relato de seu amigo de trabalho, inserindo o contexto do relato no tempo mexicano contemporâneo, impregnado de rituais híbridos e já rotineiros:
 
"Hace poco tempo, Filiberto murió ahogado en Acapulco. Sucedió en Semana Santa. Aunque había sido despedido de su empleo en la Secretaría, Filiberto no pudo resistir la tentación burocrática de ir, como todos los años, a la pensión alemana, comer el choucrout endulzado por los sudores de la cocina tropical, bailar el Sábado de Gloria en la Quebrada [...] [10]
 
Desde um prisma racionalista, a atitude de Filiberto - tentar vencer, à meia-noite, o longo trecho entre Caleta e a ilha de Roqueta - é interpretada como um desvario ou, talvez, excesso de confiança de um homem que havia sido, na juventude, um bom nadador, mas que agora, aos quarenta - "tan desmejorado como se le veía" -, extrapolara seus limites ao conceber tão absurda proeza.
 
Durante o transporte do corpo, enquanto faz o desjejum com "ovos e chouriço" - "apesar das curvas" e do "fedor a vômito" -, o colega de Filiberto procura no "diário" do morto algo que possa justificar seu inusitado e inexplicável comportamento: por que teria esquecido suas obrigações, "por qué dictaba ofícios sin sentido, ni número, ni 'Sufragio Efectivo No Reelección'. Por qué, en fin, fue corrido, olvidada la pensión, sin respetar los escalafones." (p. 20)
 
Subjaz a probabilidade de Filiberto ter enfrentado - pessimamente - a decantada "crise dos quarenta", transformada numa espécie de rito de passagem masculino. A transcrição do "diário" confirma a crise de identidade já sugerida no início do conto (procurava "sentirse 'gente conocida' en el oscuro anonimato de la Playa de Hornos", p. 19): sentado numa das cadeiras modernizadas de um café e separado pelos dezoito "agujeros" do Country Club de seus bem sucedidos companheiros de juventude - que não o reconheciam ou fingiam não reconhecer -, Filiberto reconstrói as frustradas esperanças de um tempo sem retorno, no qual, todos num mesmo plano, acreditavam poder forjar amizades duradouras, em cuja companhia cursariam "o mar bravio" (p. 20):
 
"No fue así. No hubo reglas. Muchos de los humildes se quedaron allí, muchos llegaron más arriba de lo que pudimos pronosticar en aquellas fogosas, amables tertulias. [...] Desfilaron en mi memoria los años de las grandes ilusiones, de los pronósticos felices y, también, todas las omisiones que impidieron su realización." (p. 20-21)
 
O tempo vivenciado por Filiberto é progressista e individualizador, vertiginoso e irreversível, e não aquele idealizado como algo palpável, semelhante a um jogo infantil, um quebra-cabeças com partes limitadas e lógicas, facilmente manipuláveis pelo jogador, dono absoluto da realidade "criada": "Sentí la angustia de no poder meter los dedos en el passado y pegar los trozos de algún rompecabezas abandonado." (p. 21) A evocação de Rilke reforça o questionamento existencial: como um Orfeu moderno, Filiberto se vê assaltado pela dúvida: não teria sido enganado durante todo esse tempo? Constata que até mesmo a "grande arca de brinquedos" acaba sendo esquecida no curso dos anos. Os brinquedos, assim como os expedientes, não são mais que disfarces, ilusões de poder e domínio ordenador sobre a realidade:
 
"[...] ¿quíén sabrá donde fueron a dar los soldados de plomo, los cascos, las espadas de madera? Los disfraces tan queridos, no fueron más que eso. [...] La gran recompensa de la aventura de juventud debe ser la muerte; jóvenes, debemos partir con todos nuestros secretos. Hoy, no tendría que volver la mirada a las ciudades de sal. [...]" (p. 21)
 
A partir de vários índices - "sucedió en Semana Santa", "la primera noche de su nueva vida" - intensifica-se, pouco a pouco, o caráter ritual da morte de Filiberto,  especialmente em seu comentário sobre a "teoria" do descrente amigo Pepe - "Que si yo no fuera mexicano, no adoraria a Cristo" -, que insere a problemática individual do personagem no âmbito sócio-cultural. Filiberto interpreta o Cristianismo  - "em seu sentido cálido, sangrento, de sacrifício e liturgia" - como "uma prolongação natural e renovada da religião indígena". Assim como Cristo, os deuses haviam se sacrificado pelo bem dos homens, como Nanahuatzin, que se atirara ao fogo sagrado para dar vida a Huitzilopochtli, o "sol glorioso, esplendoroso em seu zênite".[11] Cobravam, contudo, oferendas: o sangue humano dado em sacrifício, o qual, repetindo a doação divina primordial, renovavam-na, revigorando a divindade. O Cristianismo transformaria em símbolo o que, entre os astecas, era um ritual concreto:

"No, mira, parece evidente. Llegan los españoles y te proponen adorar a un Dios muerto hecho un coágulo, con el costado herido, clavado en una cruz. Sacrificado. Ofrendado. ¿Qué cosa más natural que aceptar un sentimento tan cercano a todo tu cerimonial, a toda tu vida? [...] Los aspectos caridad, amor y la otra mejilla, en cambio, son rechazados. Y todo en México es eso: hay que matar a los hombres para poder creer en ellos." (p.21-22) [12]
 
Filiberto transita entre esses dois espaços culturais: passa seus fins de semana em Tlaxcala e Teotihuacán - esta, a "cidade dos deuses"; aquela, a terra dos aliados de Cortés -, seguindo sua inclinação por "certas formas de arte indígena mexicana". A intromissão mútua desses dois mundos - a "afición" de Filiberto e a consequente inserção da arte indígena no cotidiano - atua, ironicamente, como elemento desordenador. Filiberto é inteirado, por intermédio de seu amigo Pepe, da existência de uma réplica do Chac Mool - "de piedra y parece que barato" - na Lagunilla, o mercado-de-pulgas da cidade do México.
Chac Mool (Altar de sacrifícios)
A aquisição descaracteriza a iconografia original do deus maia de Yucatán, senhor da agricultura e da água fecundante, criatura de porte robusto e gigantesco a quem eram oferendados os corações das vítimas imoladas, depositados, ainda pulsantes, sobre o ventre da estátua. Na "tienducha" indicada por Pepe, Filiberto encontra a "peça preciosa", em tamanho natural, iluminada verticalmente por um foco que, "recortando todas as suas arestas", dava-lhe "uma expressão mais amável". A veemente argumentação do vendedor não consegue convencer Filiberto quanto à originalidade da escultura: percebe que, para convencer os turistas da "sangrienta autenticidad" da peça, o "desleal vendedor le há embarrado salsa de tomate en la barriga al ídolo". (p. 22-23) O gracejo dos colegas de trabalho reitera essa descaracterização:
 
"Un guasón pintó de rojo el agua del garrafón en la oficina, con la consiguiente perturbación de las labores. He debido consignarlo al Director, a quien sólo le dio mucha risa. El culpable se ha valido de esta circunstancia para hacer sarcarmos a mis costillas el día enterro, todos en torno al agua. Ch..." (p. 22)
 
Com o transporte da estátua ao velho casarão de Filiberto, tem início um grotesco ritual de transfiguração, cujos primeiros indícios são ainda vistos através de um ponto de vista lógico: Filiberto atribui a causa da inundação do porão - onde se encontra a "razoável réplica" de Chac Mool - à tubulação "descompuesta" e a sua própria imprudência ao deixar "correr el agua de la cocina", que "se desbordó, corrió por el piso y llegó hasta el sótano, sin que me precatara." (p. 23) Surge, assim, a primeira explicação convincente para a súbita alteração de seu comportamento no ambiente de trabalho: "Todo esto, en día de labores, me obligó a llegar tarde a la oficina." (p. 23)
 
Os terríveis lamentos noturnos que sobrevêm ao conserto dos encanamentos instauram a dúvida - "Pensé en ladrones. Pura imaginación. [...] Los lamentos nocturnos han seguido. No sé a qué atribuirlos, pero estoy nervioso." - e o estranhamento - "Es la primera vez que el agua de las lluvias no obedece a las coladeras y viene a dar a mi sótano." (p. 24)
 
A progressiva manifestação do insólito esbarra com o racionalismo de Filiberto: ao raspar o musgo do Chac Mool - que "parece padecer de una erisipela verde, salvo los ojos, que han permanecido de piedra" - tem a impressão, ao seguir com a mão os contornos de pedra, de que esta amolece; contudo, vê o incidente como um logro: "No quise creerlo; era ya casi una pasta. Este mercader de la Lagunilla me ha timado. Su escultura precolombina es puro yeso, y la humedad acabará por arruinarla." (p. 24) Filiberto recusa-se a acreditar no que lhe revelam seus sentidos: os "trapos" com que havia coberto a estátua caíram ao chão; volta a apalpá-la - "No quiero escribirlo" - e sente que "hay en el torso algo de la textura de la carne", que seus braços parecem de borracha, que "algo circula por esa figura recostada...".
 
Ao constatar que seu Chac Mool tem pelos nos braços - este sim, fato insólito, por tratar-se de um deus-indígena -, Filiberto tem sua metódica vida transtornada:
 
"Nunca me había sucedido. Tergiversé los assuntos en la oficina, giré una orden de pago que no estaba autorizada, y el Director tuvo que llamarme la atención. Quizá me mostré hasta descortés con los compañeros. Tendré que ver a um médico, saber si es imaginación o delirio o qué, y deshacerme de ese maldito Chac Mool." (p . 25)
 
"Hasta aqui",  observa o colega interrompendo a transcrição, "la escritura de Filiberto era la antigua, la que tantas veces vi en formas y memoranda, ancha y ovalada." (p. 25). A única data mencionada - 25 de agosto[13] - marca uma mudança de personalidade em Filiberto, que às vezes escreve "como niño" - "separando trabajosamente cada letra" - ou, então, com um traçado nervoso, "hasta diluirse en lo ininteligible". Após três dias sem anotações, o diário continua: sobre as folhas do "caderno barato", de linhas quadriculadas e simétricas, descompõe-se o relato de Filiberto na mesma proporção com que se dilacera sua percepção unívoca da realidade:
 
"Todo es tan natural; y luego se cree en lo real... pero esto lo es, más que lo creído por mí. [...] Real bocanada de cigarro efímera, real imagen monstruosa en un espejo de circo, reales, ¿no lo son todos los muertos, presentes y olvidados?... [...] ... Realidad: certo día la quebraron en mil pedazos, la cabeza fue a dar allá, la cola aquí y nosotros no conocemos más que uno de los trozos desprendidos de su gran cuerpo. Océano libre y fictício, sólo real cuando se le aprisiona en el rumor de um caracol marino. [...]" (p. 25)

Opera-se uma transformação final no "tenro e elegante" Chac Mool - muda de cor numa só noite, é agora amarelo, quase dourado, parecendo indicar se um deus, "por ahora laxo, con las rodillas menos tensas que antes, con la sonrisa más benévola" - que arranca Filiberto de sua desvanescente realidade - "movimento reflejo, rutina, memoria, cartapacio" - para inseri-lo numa outra, a dos deuses que cobram dos homens, com a morte, o culto à vida:

"Y luego, como la tierra que un día tiembla para que recordemos su poder, o como la muerte que un día llegará, recriminando mi olvido de toda la vida, se presenta otra realidad: sabíamos que estaba allí, mostrenca; ahora nos sacude para hacerse viva y presente." (p. 26)

No primeiro contato com esta outra realidade, Filiberto experimenta o terror imanente a todas as culturas que vivem próximas às origens:

"El cuarto olía a horror, a incenso y sangre. Con la mirada negra, recorrí la recámara, hasta detenerme en dos orifícios de luz parpadeante, en dos flámulas crueles y amarillas.
"Casi sin aliento, encendí la luz.
"Allí estaba Chac Mool, erguido, sonriente, ocre, con su barriga encarnada. Me paralizaban los dos ojillos, casi bizcos, muy pegados al caballete de la nariz triangular. Los dientes inferiores mordían el lábio superior, inmóviles; sólo el brillo del casquetón cuadrado sobre la cabeza anormalmente voluminosa, delataba vida. Chac Mool avanzó hacia mi cama; entonces empezó a llover." (p. 26)

O dilatado lapso temporal decorrido entre os últimos acontecimentos e as anotações seguintes é preenchido pelo comentário do colega de Filiberto, que relembra o fato de este ter sido despedido da Secretaria, em fins de agosto, "con una recriminación pública del Director y rumores de locura y hasta de robo". Embora sem saber que explicações dar a si próprio sobre esse estranho comportamento, recusa-se a acreditar nas acusações. Sim, tinha visto alguns "ofícios descabelados" nos quais Filiberto perguntava "al Oficial Mayor si el agua podia olerse" ou então oferecia "sus servicios al Secretario de Recursos Hidráulicos para hacer llover en el desierto", mas havia procurado sempre uma resposta racional:

"[...] pensé que las lluvias, excepcionalmente fuertes, de ese verano, habían enervado a mi amigo. O que alguna depresión moral debía producir la vida en aquel caserón antiguo, con la mitad de los cuartos bajo llave y empolvados, sin criados ni vida de familia". (p. 26-27)

Com a "convivência", Filiberto descobre que Chac Mool, apesar de seu aspecto onipotente e aterrador, "puede ser simpático cuando quiere". Há nele, porém, algo de caricatural:

"[...] Sabe historias fantásticas sobre los monzones, las lluvias ecuatoriales y el castigo de los desiertos; cada planta arranca de su paternidade mítica: el sauce es su hija descarriada; los lotos, sus niños mimados; su suegra, el cacto. Lo que no puedo tolerar es el olor, extra-humano, que emana de esa carne que no lo es, de las sandalias flamantes de vejez. Con risa estridente, Chac Mool revela como fue descubierto por Le Plongeon y puesto fisicamente en contacto de hombres de otros símbolos. Su espíritu ha vivido en el cántaro y en la tempestad, naturalmente; otra cosa es su piedra, y haberla arrancado del escondite maya en el que yacía es artificial y cruel. Creo que Chac Mool nunca lo perdonará. El sabe de la inminencia del hecho estético." (p. 27)


Tláloc
Réplica, produzida no mundo contemporâneo, de um deus oriundo de uma civilização dominada,[14] o Chac Mool de Filiberto é triplamente aculturado. Parece querer recuperar sua hegemonia ao exigir de Filiberto "sapolio para que se lave el vientre que el mercader, al creerlo azteca, le untó de salsa ketchup" e reage, contrariado, à pergunta sobre seu parentesco com Tláloc, a divindade asteca da chuva. Pouco a pouco, vai se apoderando do espaço de Filiberto: "Los primeiros días, bajó a dormir al sótano; desde ayer, lo hace en mi cama". No entanto, opostamente ao deus maia original, seu poder revela-se limitado. Com o início da temporada seca, desespera-se:

"Ayer, desde la sala donde ahora duermo, comencé a oír los mismos lamentos roncos del principio, seguidos de ruídos terribles. Subí, entreabrí la puerta de la recámara: Chac Mool estaba rompiendo las lámparas, los muebles; al verme, salió hacia la puerta con las manos arañadas, y apenas pude cerrar e irme a esconder al baño. Luego bajó, jadeante, y pidió agua; todo el día tiene corriendo los grifos, no queda un centímetro seco en la casa. Tengo que dormir muy abrigado, y le he pedido que no empape más la sala." (p. 27-28)

Filiberto reconhece que "mientras no llueva", Chac Mool "vivirá colérico e irritable" e questiona seu "poder mágico". Escondendo-se na bata de Filiberto toda vez que começa a brotar-lhe musgo, Chac Mool procura disfarçar o simbolismo que o identifica com o deus asteca: do exuberante amarelo-dourado, cor do milho - do qual era o principal protetor no culto maia -, cor da pujança e do poder pleno, passa ao verde, cor de Tláloc - deus da chuva fecundante, mas também da tempestade e da seca abrasante -, que embora dispusesse, com seu livre arbítrio, sobre as forças da natureza, não as manejava pessoalmente.

Filiberto esperava que seu Chac Mool - assim como as estatuetas, ídolos e vasilhames por ele colecionados desde a juventude - pudesse repetir a ilusão dos jogos infantis, assegurando, com seu "poder mágico", a permanência das esperanças de realização. No quarto que lhe havia sido reservado, entre os troféus, a estátua de deus representaria mais uma dessas porções de realidade detidas no tempo. No entanto, Chac Mool apenas duplica o frustrante e imperioso cotidiano:

"El Chac Mool inundó hoy la sala. Exasperado, le dije que lo iba a devolver al mercado de la Lagunilla. Tan terrible como su risilla - horrorosamente distinta a cualquier risa de hombre o de animal - fue la bofetada que me dio, con ese brazo cargado de pesados brazaletes. Debo reconocerlo: soy su prisioneiro. Mi idea original era bien distinta: yo dominaria a Chac Mool, como se domina a un juguete; era, acaso, una prolongación de mi seguridad infantil; pero la niñez - ¿quién lo dijo? - es fruto comido por los años, y yo no me he dado cuenta... [...] El Chac Mool está acostumbrado a que se le obedezca, desde siempre y para siempre; yo que nunca he debido mandar, sólo puedo doblegarme ante él. [...]" (p. 28)

Adulterado, esse "gluglú de agua embelesado" reflete a mesma modernidade que Filiberto, em seu lúgubre casarão de arquitetura porfiriana, única herança e recordação de seus pais, se recusa a aceitar - "Pero yo no puedo dejar este caserón [...]":

"[...] Pepe me ha recomendado cambiarme a una casa de apartamentos, y tomar el piso más alto, para evitar estas tragédias acuáticas. [...] No sé qué me daría ver una fuente de sodas con sinfonola en el sótano y una tienda de decoración en la planta baja." (p. 24)

Chac Mool não é autocontido nem omnicontinente. Destiuído de condição divina, humaniza-se, passando a ser acossado pelas necessidades dos mortais: "[...] huesos de perros, de ratones y gatos. Esto es lo que roba en la noche Chac Mool para sustentarse [...]; quiere que traiga una criada a la casa; me ha hecho enseñarle a usar jabón y lociones. [...]" (p. 28-30)

Desconhecendo que Filiberto está "al tanto de sus correrias nocturnas", prossegue com suas investidas: "Ya no tienen lugar aquellos intermedios amables durante los cuales relataba viejos cuentos; creo notar en él una espéeie de resentimiento concentrado." (p. 29) Ao vê-lo reclinado durante horas, paralisado, contra a parede - quiçá de cuclillas, como costumavam sentar-se os indígenas e mestiços mexicanos do meio rural - Filiberto pensa que, se não chover logo, se converterá novamente em estátua de pedra. Nota, ainda, que "hay algo de viejo en su cara que antes parecía eterna" e acredita encontrar-se aí sua salvação: caindo em tentação, humanizando-se por completo, "posiblemente todos sus siglos de vida se acumulen en un instante y caiga fulminado por el poder aplazador del tempo." (p. 29) Mas é provável, também, que Chac Mool não deseje que assistam à sua derrocada: "no querrá un testigo..., es posible que desee matarme."

O último relato de Filiberto em seu diário revela a iminência de uma transferência de identidade:

"Hoy aprovecharé la excursión nocturna de Chac para huir. Me iré a Acapulco; veremos qué puede hacerse para conseguir trabajo y esperar la muerte de Chac Mool; sí, se avecina: está canoso, abotagado. Yo necesito asolearme, nadar, recuperar fuerzas. Me quedan cuatrocientos pesos. Iré a la Pensión Müller, que es barata y cómoda. Que se adueñe de todo Chac Mool: a ver cuánto dura sin mis baldes de agua." (p. 30)

Filiberto almeja passar de dominado a dominador; anseia pela luz e pelo sol, origem e condição dos deuses; busca o mar, a água - não a das torneiras e das fontes públicas -, que, de certa forma, já havia sido, em sua juventude, seu elemento natural, o qual havia dominado, triunfante, como uma espécie de deus.

Interpretada quer como suicídio, quer como deliberação divina, a morte de Filiberto ocorre sob um signo agônico, fazendo com que retorne a simbologia das cores: o amarelo de Chac Mool - o mágico tempo dos sonhos não concretizados, adiado e, finalmente, caduco e corroído como o antigo, e agora velho, deus maia; o verde de Tláloc[15]a revificação, a conquista do paraíso, o Tlalocán, reservado para todos os que, favorecidos pelo deus da jovem cultura asteca, tivessem sucumbido a uma causa mortis pela água; paraíso este idealizado como jardim de verdura e de flores, permanentemente debaixo de chuva morna, no qual reinariam a abundância, o sossego e o júblio pacífico.[16]

Porém, padecendo a mesma crise de identidade, Filiberto e seu Chac Mool, como duplos, estão condenados à transfiguração grotesca:

"[...] Filiberto esperaba, muy pálido dentro de su caja, a que saliera el camión matutino de la terminal, y pasó acompanhado de huacales y fardos la primera noche de su nueva vida. Cuando llegué, muy temprano, a vigilar el embarque del féretro, Filiberto estaba bajo un túmulo de cocos: el chofer dijo que lo acomodáramos rápidamente en el toldo y lo cubriéramos con lonas, para que no se espantaran los pasajeros, y a ver si no le habíamos echado la sal al viaje." (p. 19-20)

"Antes de que pudiera inrtroducir la llave en la cerradura, la puerta se abrió. Apareció un indio amarillo, en bata de casa, con bufanda. Su aspecto no podia ser más repulsivo; despedía un olor a loción barata; quería cobrir las arrugas con la cara polveada; tenía la boca embarrada de lápiz labial mal aplicado, y el pelo daba la impresión de estar teñido." (p. 30)

No final do conto, parece encerrar-se, para ambos, o cíclico percurso ritual. Contudo, para o colega de Filiberto, assim como para o leitor, abre-se uma longa e sinuosa espiral:

"- Perdone... no sabía que Filiberto hubiera...
"- No importa; lo sé todo. Dígale a los hombres que lleven el cadáver al sótano." (p. 30)


Conclusão

Realidade ou alucinação? Como o colega de Filiberto - que não consegue explicação para a "loucura" do amigo -, buscamos "dar coherencia al escrito, relacionarlo con excesso de trabajo, con algún motivo sicológico". (p. 30)

Marcado pelo tom irônico, o relato de Filiberto bem poderia ter sido uma grande burla, uma enganosa justificativa para sua morte, única solução capaz de torná-lo "gente conocida".

Como hieróglifos que se decodificam e re-codificam mutuamente, o racional e o irracional, em Fuentes, atuam com dualidade crítica: questionamento da realidade mexicana presente que engendra, imediatamente, "a evocação de uma outra realidade": "A crítica transforma-se em criação de um mito e o mito está ameaçado sempre pela crítica".[17]

Filiberto e seu Chac Mool, como reflexo de toda a linguagem de Fuentes, são "crítica que destrói a mentira das palavras com outras palavras, que, tão logo pronunciadas, se congelam e se convertem de novo em máscaras." [18]

Afinal, este é o agônico ritual que rege o tempo mexicano: "O México não consegue nunca reconhecer-se em sua máscara".[19]


Bibliografia

1) DONATO, Hernani. Dicionário de mitologia. São Paulo, Cultrix, s.d., v. 1, Mitologias asteca, maia, aruaque e caraíba, inca, tupi, diaguita, banto, ioruba, ewe e fanti-ashanti, negro maometana, 275. p.

2) FUENTES, Carlos. Cuerpos y ofrendas.  Antología. Prólogo de Octavio Paz. 3 ed. Madrid, Alianza, 1981, 270 p.

3) ______. Tiempo mexicano. 7 ed. México, Joaquín Mortiz, 1978, 96 p.

4) Mitologias. Barcelona, Planeta, 1982, v. 4, De las estepas, de los bosques y de las islas, 280 p.


Notas

[1] PAZ, Octavio. La máscara y la transparencia. In: FUENTES, C. (1981), viii.

[2] Idem, ibidem, viii.

[3] FUENTES, C. De Quetzalcóatl a Pepsicóatl. (1978), p. 39.

[4] Idem, ibidem, p. 22.

[5] Idem, ibidem, p. 19.

[6] Idem, ibidem, p.21.

[7] Idem, ibidem, p. 39.

[8] Idem, ibidem, p. 40.

[9] FUENTES, C. (1981), p. 19-30.

[10] Idem, ibidem, p. 19. As demais citações terão indicação de página.

[11] Mitología de la América Central. Los astecas. In: Mitologias. (1982), p. 192.

[12] É o que ocorre, por exemplo, com a mitificação de Emiliano Zapata. Em seu artigo "La novela de la Revolución Mexicana" (Madrid, Cuadernos hispanoamericanos, XC (268):117-125, octubre 1972), Manuel Zapata Olivella transcreve uma observação de Brushwood sobre Tierra (1932), de Gregorio López y Fuentes: "Hacia el final del libro, el autor emplea uno de sus trucos literarios muy efectivos cuando dice que todo el mundo sabe que Antonio (el símbolo físico de la Revolución) está muerto, pero nadie sabe dónde está enterrado, mientras todo el mundo conoce dónde está sepultado Zapata, pero nadie cree que esté muerto. Zapata se ha convertido en leyenda." (p. 120)

[13] É a época de verão, no México. Infelizmente, desconhecemos sua correspondência com o Tonalpoualli - calendário divinatório - e com o Xiuitl - ano solar - astecas, este último, ao qual nos referimos na sequência do presente trabalho.

[14] Os maias diluíram-se, socialmente, com o domínio sasteca. Contudo, permaneceram vivas, entre os dominadores, muitas das tradições culturais dessa antiga civilização, em especial as mítico-religiosas.

[15] Parece existir, no conto, uma relação simbólica entre o ritual que envolve Filiberto e seu Chac Mool e o Xiuitl, ano solar asteca: no Uey-Tozoztli - "a grande vigília" -, homenageava-se Centeotl, o deus do milho; em seu quinto mês, o Toxcal, período da seca, era sacrificado um rapaz que durante um ano vivera como grande senhor à espera desse momento; no Etzalqualiztli, o sexto mês, com banhos cerimoniais em águas reservadas, danças e banquetes, jejuns, penitências (como na Semana Santa cristã), eram sacrificadas vítimas humanas ao deus Tláloc e aos deuses da água e da chuva; o Uey-Tecuilhuitl, oitavo mês, marcava a época do sacrifício ritual de uma mulher personificando Xilonen, a deusa do trigo novo. (Hernani, p. 247, 242, 104 e 247, respectivamente). A aquisição da estátua do deus maia, o "sacrifício" de Filiberto e, finalmente, o Chac Mool "travestido" são a moderna e grotesca transposição da concepção de mundo indígena.

[16] HERNÂNI, D., p. 237.

[17] PAZ, O. In: FUENTES, C. (1981), ix.

[18] idem, ibidem, ix.

[19] FUENTES, C. (1978), p. 25.

2 comentários:

Carlos Alberto Roldán disse...

¿Me permites colocarlo en Utopoesía?

Carlos

Maria Aparecida da Silva disse...

Sí, disponga. Y gracias.